segunda-feira, 23 de abril de 2007






O EVANGELHO DE JUDAS ISCARIOTES – UMA INTRODUÇÃO
Prof. Denes Izidro © 2006[1]

O Evangelho de Judas é o livro apócrifo do NT descoberto mais recentemente, engrossando assim a controvertida lista de Evangelhos apócrifos do mesmo. Depois das descobertas de Nag Hammadi, em 1945, e Qumran, a partir de 1947, essa parece ser uma das mais importantes descobertas do mundo bíblico, mais especificamente do pano de fundo histórico do cristianismo primitivo. A descoberta do Evangelho de Judas concorre para uma maior compreensão do gnosticismo cristão do II século d.C. e para estudos do gênero.
Irineu de Lyon e o Evangelho de Judas

Foi graças à menção que Irineu, bispo de Lyon, fez ao Evangelho de Judas, c.180 d.C., em sua obra contra heresias (31.1), como material herético, que se tomou conhecimento da existência desse Evangelho gnóstico. Contudo, até a descoberta da tradução copta do Evangelho de Judas, nada mais se sabia a respeito dele. O que fez com que permanecesse na lista de obras que nos são conhecidas apenas por esparsas citações dos pais da igreja.[2] A descoberta desse manuscrito, portanto, vem confirmar a exatidão de Irineu e confirmar também a própria autenticidade do referido manuscrito. A seguir a referida citação de Irineu ao Evangelho de Judas:
“outros ainda dizem que Caim deriva da potência suprema e que Esaú, Core, os sodomitas e semelhantes eram todos da mesma raça dela; motivo pelo qual, mesmo combatidos pelo criador, nenhum deles sofreu algum dano, porque Sofia atraiu a si tudo o que lhe era próprio. Dizem que Judas, o traidor, sabia exatamente todas estas coisas e por ser o único dos discípulos que conhecia a verdade, cumpriu o mistério da traição e que por meio dele foram destruídas todas as coisas celestes e terrestres. E apresentam, à confirmação, um escrito produzido por eles, que intitulam Evangelho de Judas (o grifo é meu).”[3]

A descoberta do Manuscrito Egípcio

O códex que contém o Evangelho de Judas foi descoberto por volta de 1978, no Egito, e contém 66 páginas. Além do Evangelho de Judas esse códex contém outros três livros de natureza e produção gnóstica: Carta de Pedro a Filipe, Tiago (talvez o Apocalipse de Tiago) e Allógenes. O códex foi descoberto por um desses caçadores de antiguidades em uma das cavernas próximas a El Mynia.
Após a sua descoberta o códex tchacos, como ficou conhecido, circulou entre negociantes de antiguidades no Egito, Europa e EUA. Nos EUA, após muitas tentativas fracassadas de negociação, o códex ficou depositado em um cofre, em Nova York, por cerca de 17 anos, até que Frieda Nussberger Tchacos, uma negociante de antiguidades, o comprasse em abril de 2000. Depois de várias tentativas insólitas de negociação e após perceber o estado de deterioração dos manuscritos, Frieda o encaminhou à Fundação Maecenas de Arte Antiga, em Basiléia, Suíça, em Fevereiro de 2001, para a restauração, tradução e publicação dos manuscritos. A Fundação então desenvolveu o projeto em parceria com a National Geographic Society.

Características do Manuscrito Copta do Evangelho de Judas

O manuscrito do Evangelho de Judas foi escrito em língua copta (antigo idioma egípcio) em papiro, e possui 26 páginas, escritas frente-verso. O original desse Evangelho deve ter sido escrito em grego, segundo indícios lingüísticos no próprio documento[4], e pertence ao II d.C. Portanto, o manuscrito que temos do Evangelho de Judas é uma tradução copta de um original escrito em grego. O manuscrito deve datar de 220 à 340 d.C, conforme resultados de testes de autenticação do manuscrito, embora alguns estudiosos preferem datá-lo para o final do IV século[5] d.C. Devido às condições desfavoráveis do códex, de antiquários à antiquários, o manuscrito se deteriorou muito originando grandes lacunas em suas páginas, o que dificulta e até mesmo impede a sua leitura em alguns pontos do texto.

A Restauração do Manuscrito

A permanência do manuscrito do Evangelho de Judas no deserto, sob condições favoráveis à sua preservação, de fato o manteve intacto por cerca de 1700 anos. Contudo, o mesmo deteriorou-se grandemente por ter ficado 16 anos em um cofre, em Nova York, nos EUA, até a sua aquisição por Frieda Tchacos. Como conseqüência disso, todo o códex se despedaçou em quase mil fragmentos, ocasionando muitas lacunas no texto e grandes dificuldades para sua restauração. Diante do estado de deterioração e desintegração do códex, um trabalhoso processo de restauração do manuscrito teve de ser iniciado. Os estudiosos convocados para restaurar e traduzir o codex foram Rodolfo Kasser, Gregor Wurst e Florence Darbre, os quais trabalharam por cinco anos remendando e traduzindo o conteúdo dos manuscritos. Pelo menos cerca de 85% do manuscrito de Judas pôde ser restaurado com sucesso. O códex em si parece ter uma lacuna de 42 páginas faltando, pois além das 66 páginas do códex descobriu-se mais recentemente um fragmento no qual a página 108 parece aparecer. Se isso for verdade, pelo menos 42 páginas estão faltando do total do códex copta. Não obstante, essa lacuna não se refere a nenhum dos quatro tratados encontrados no códex tchacos, mas a outros livros.
Autenticação do Manuscrito

Devido a grande quantidade de falsificações de artefatos antigos, para não correr o risco de ter nas mãos mais uma falsa antiguidade[6], vários testes de autenticação foram feitos no codex tchacos. Os testes de Radiocarbono ou Carbono 14, análise da tinta do manuscrito, análise Multi-espectral Computadorizada, análise paleográfica, contextualização de conteúdo e lingüística, comprovaram de fato a veracidade da descoberta e a sua datação – III ou IV séculos d.C. Vários estudiosos de diversas confissões e nacionalidades foram contratados para analisar e avaliar o manuscrito, desde coptólogos preeminentes como Rodolphe Kasser até estudiosos de Novo Testamento como Donald Sênior, SJ, e Craig Evans, e especialistas em gnosticismo como Elaine Pagels e Stephen Emmel.

Tradução e Publicação do Manuscrito

O Evangelho de Judas foi traduzido para o inglês pelos estudiosos de língua copta Rodolphe Kasser, Gregor Wurst e Marvyn Mayer. A National Geographic Society, então, publicou, em 6 de abril de 2006, em um único volume a tradução do Evangelho de Judas em inglês com introduções pelos editores e tradutores acima citados, incluindo Bart Ehrman, explicando a condição do codex, a relação do Evangelho de Judas com a literatura cristã antiga e noções gerais sobre outros textos gnósticos antigos. O Evangelho de Judas deve ser traduzido também para o francês e o alemão muito em breve.
O Conteúdo do Evangelho de Judas

O texto na verdade é uma coletânia de diálogos de Jesus com seus discípulos, especialmente Judas. Jesus tem pelo menos seis diálogos particulares com Judas Iscariotes nesse Evangelho. Sem dúvida, Judas Iscariotes, o “traidor”, é apresentado nesse Evangelho não como um vilão, mas como um verdadeiro herói e facilitador da Salvação. Judas se distingue dos demais discípulos como o mais iluminado e mais importante deles – é o único que compreende quem Jesus é realmente. Somente Judas é capaz de receber os mais profundos ensinamentos e revelação de Jesus. Ele foi escolhido pelo próprio Jesus para sacrificar o corpo físico de Jesus e libertá-lo da roupagem carnal que o prende e limita.[7] O Evangelho começa com uma indicação de Judas como o privilegiado receptáculo das revelações secretas de Jesus: “o relato secreto da revelação do que disse Jesus em conversa com Judas Iscariotes..” e, conforme assevera Craig Evans, um dos estudiosos desse Evangelho, “O Evangelho de Judas relata o que quer relatar: a obediência de Judas e como esta obediência ajuda Jesus a cumprir sua missão de salvação. Judas é transformado de vilão a herói, de traidor a santo.”.
Autoria do Evangelho de Judas

Não há dúvidas de que o Evangelho de Judas não foi escrito por ele mesmo, mas por uma seita gnóstica cristã do II século d.C. designada por Ireneu como Cainitas, isto é, seguidores de Caim. Eles se identificavam com os vilões do Antigo Testamento. Faziam isto porque acreditavam que o deus deste mundo, o criador, o deus do Antigo Testamento, em grande contraste com o Deus de luz do alto, é mau. E qualquer pessoa que o deus criador desse mundo, o demiurgo, que odeia e tenta destruir – como Caim, Esaú e os sodomitas – devem ser pessoas de bem, pessoas do lado do Deus de Luz. Todos aqueles que de alguma forma fossem contrários ao deus mau do AT, eram bons e servos do verdadeiro Deus. O Evangelho de Judas concorda com este tipo de perspectiva e é, portanto, uma distorção gnóstica da traição de Jesus.

Valor e Contribuição Histórica do Evangelho de Judas

O Evangelho de Judas está em posição diametralmente oposta a dos Evangelhos canônicos no que diz respeito ao papel de Judas Iscariotes na crucificação de Jesus. Pois enquanto os Evangelhos bíblicos apresentam Judas como traidor (Mc.14.10,11), Mercenário (Mt.26.14-16), Ladrão (Jo.12.4,6), Diabo (Jo.6.70,71) e endiabrado (Lc.22.3-6;Jo.13.2), o Evangelho de Judas o apresenta como o maior dos discípulos e facilitador da salvação. O único que reconhece Jesus e compreende o seu ministério. O ajudador de Jesus no plano de salvação. Neste aspecto, o Evangelho de Judas é pura ficção herética e não diz respeito ao Jesus histórico ou ao Judas histórico.
Não obstante, o valor histórico do Evangelho de Judas em outros aspectos precisa ser esboçado. Devido seu teor herético e pouco histórico, esses livros apócrifos têm sido prontamente e irrefletidamente desprezados. Contudo, tratados apócrifos como o Evangelho de Judas podem ter alguma contribuição a dar no campo dos estudos sobre o Jesus Histórico e a Igreja primitiva. O valor e a contribuição do Evangelho de Judas para a pesquisa do NT não deve ser ignorada.
Não podemos ignorar a importância dessa descoberta para o estudo do cristianismo primitivo em pelo menos dois ângulos. Primeiro, o Evangelho de Judas nos mostra o quanto o cristianismo primitivo era diversificado e não monolítico. A disputa entre ortodoxia e heresia nos primórdios da igreja das origens fica cada vez mais clara a partir de descobertas desse tipo. O Evangelho de Judas deve nos ajudar pelo menos no estudo da história das heresias da Igreja cristã primitiva. E em segundo lugar, nossa compreensão do gnosticismo contemporâneo à igreja primitiva se aprofunda um pouco mais através de um provável exemplar do Gnosticismo Sethiano, configurado no Evangelho de Judas, e que surgiu após 70 d.C.
Não obstante seja improvável que o Evangelho de Judas possa acrescentar novos conhecimentos à relação de Judas com Jesus ou mesmo ao Jesus histórico, talvez o mesmo contenha elementos de tradição que possam servir a exegetas e historiadores para uma compreensão melhor desse controvertido discípulo.

[1] Denes Izidro é Pastor evangélico e estudioso de Novo Testamento, desenvolvendo pesquisas na área de Bíblia e literatura cristã primitiva canônica e não-canônica. Além disso, é também professor de Língua, Literatura, Contexto e Teologia do NT, e outras disciplinas na área de Bíblia e seu contexto histórico-literário, na Faculdade Teológica Cristã do Brasil (DF).
[2] Obras gnósticas como o Evangelho de Eva ainda nos são conhecidas apenas por citações dos antigos pais eclesiásticos.
[3] Irineu de Lião, contra as heresias: Denúncia e refutação da falsa gnose. Paulus: 1995.2ª Edição.31.1.
[4] Segundo Marvin Meyer , estudioso que ajudou na reconstrução do códex tchacos, o tipo de copta usado no Evangelho de Judas é típico de traduções oriundas do grego.
[5] O coptologista Stephen Emmel datou o códex, a primeira vez em 1983, quando de seu primeiro contato com os manuscritos, para o IV d.C. E não obstante a datação do Carbono-14 para o Evangelho, entre o III e IV d.C., Emmel insiste que o manuscrito pode ser mais tarde ainda – o final do IV d.C.
[6] O caso mais recente de falsificação de artefatos antigos diz respeito ao Ossuário de Tiago, Irmão de Jesus, em 2002, onde ficou constato que não passava de uma grande fraude.
[7] O texto do Evangelho de Judas diz assim: “você excederá a todos os demais. Você irá sacrificar o homem que me veste.”
FACULDADE TEOLÓGICA CRISTÃ DO BRASIL – F.T.C.B.
Literatura Cristã Primitiva
Denes Izidro, Professor ©[1]

OS EVANGELHOS APÓCRIFOS[2]

A despeito do que muitos podem pensar, o cristianismo primitivo produziu muito mais literatura e documentos do que o que nós temos hoje no Novo Testamento. Na verdade, é dificílimo mensurar a quantidade de escritos que a igreja cristã primitiva e antiga produziu nos seus primeiros quatro séculos. Documentos cristãos de diversas naturezas e origens vão aparecendo aqui e ali e nos dando uma noção do poder de produção literária do cristianismo primitivo. Dentre estes escritos cristãos primitivos, encontramos dezenas de textos que se identificam ou são identificados como “Evangelhos”. Esses escritos evangélicos não são canônicos, mas parecem concorrer na igreja com aqueles que já haviam sido oficializados. Devido seu conteúdo controvertido e sua origem enigmática esses Evangelhos sempre foram considerados, ontem e hoje, como totalmente espúrios e sem valor algum – foram designados apócrifos[3]. Mas o que realmente são estes “outros” Evangelhos? Qual a contribuição deles para a pesquisa bíblica neotestamentária? Como devemos encará-los? A seguir tentaremos responder a essas perguntas de forma mais equilibrada possível.

Definição

1.1. Conceitual

· O termo “apócrifo”, oriundo do grego (apókrifos [oculto, secreto, escondido]), designava anteriormente os livros que eram destinados a um círculo particular de leitores, aos iniciados em alguma corrente de pensamento. Depois os cristãos passaram a usá-lo para designar escritos suspeitos de heresia e não de acordo com o ensinamento oficial; escritos, por isso, não recomendáveis, mas que deviam ser excluídos não só da liturgia da igreja, como também do uso particular dos fiéis.
· Não obstante, o termo não tomou forma excludente assim tão rapidamente como poderíamos pensar. Antes, inicialmente os livros que hoje chamamos apócrifos eram chamados apenas de “não canônicos”, “duvidosos”, “contestados”, “livros que não podem ser usados na igreja”, mas “livros permitidos aos catecúmenos” ou ao uso privado dos fiéis. A definição dos Apócrifos como livros não-canônicos que deveriam ser excluídos do uso cristão e eclesiástico não foi, portanto, tão imediata, mas resultou de desenvolvimentos canônicos e teológicos da igreja.
· Os apócrifos do Novo Testamento são os escritos que não fazem parte do cânon bíblico do NT, mas pelo título, pela apresentação, pelo modo de tratar o argumento e por outros elementos internos (estilo, gênero literário,etc.) e externos se apresentam como textos canônicos e de modo implícito ou expressamente reivindicam uma autoridade sagrada igual aos do cânon ou pretendem substituí-los ou completá-los. Essa é a definição mais aceita pelos estudiosos hoje.

1.2. Literária

· Do ponto de vista de sua forma literária, nem todos os textos apócrifos que se intitulam como “Evangelhos” são na verdade considerados como tais. Entre os textos de Nag Hammadi, por exemplo, existem vários escritos que têm o título de “Evangelho” – “Evangelho de Filipe”, “Evangelho da Verdade”, “Evangelho de Maria” – mas que, no entanto, não pertencem ao gênero literário “Evangelho” ou aos seus subgêneros; “Evangelho” significa, nestes escritos, quanto ao seu conteúdo, “mensagem de salvação”.
· Somente fazem parte do conjunto de Evangelhos Apócrifos aqueles que são constituídos por tradições do tipo jesuínas, ou seja, referentes a Jesus e sua vida ou ministério, seja de material discursivo ou de narrações, tenham ou não o título de “Evangelho” em seus textos.

Categorias de Evangelhos Apócrifos

· Os Evangelhos apócrifos mais importantes são mais de vinte e podem ser divididos nas seguintes categorias: (aqui apenas uma amostra; faltam aqui, por exemplo, os muitos fragmentos de Evangelhos desconhecidos)

2.1. Evangelhos da Natividade e Infância de Jesus

i. Proto-Evangelho de Tiago
ii. Evangelho do Pseudo-Mateus
iii. História de José o Carpinteiro
iv. Evangelho da Infância de Tomé, o Filósofo

2.2. Vida Pública de Jesus

i. Evangelhos dos Ebionitas (fragmentos)
ii. Evangelho dos Hebreus e Nazarenos (fragmentos)
iii. Evangelho dos Egípcios (fragmentos)
iv. Tradições de Matias (fragmentos)
v. Evangelho de Tomé

2.3. Paixão e Ressurreição

i. Evangelho de Nicodemos
ii. Evangelho de Gamaliel
iii. Evangelho de Bartolomeu
iv. Evangelho de Pedro
v. Evangelho de Judas
vi. Evangelho de Barnabé

Formas Literárias

· Uma das formas prediletas dos Evangelhos Apócrifos é a forma sinóptica, isto é, a mesma forma literária dos Evangelhos sinópticos. Se se trata de uma verdadeira dependência dos apócrifos em relação aos canônicos ou se essa afinidade procede da tradição comum é um problema complexo, por causa principalmente da insuficiência de dados seguros. Pelo menos na literatura evangélica apócrifa mais tardia se sente claramente a influência da tradição oral marciana e mateana.
· Além dessas formas sinópticas, nos Evangelhos gnósticos, constatam-se também formas do tipo “escritos de revelação”, verdadeiras “entrevistas coletivas” com Jesus, onde ele revela aos seus discípulos os mistérios da salvação e das origens do mundo. Essa forma também é encarada por alguns como “diálogos de revelação” ou “diálogos gnósticos”.
· Uma terceira forma de Evangelhos Apócrifos bastante difundida é a que trata da vida e do ministério de Jesus, desde a sua infância até a sua ressurreição. Estes não têm preocupação com o contexto histórico da atuação de Jesus, mas apenas com os fatos de sua vida que merecem ser considerados – muitos deles são descrições lendárias em expansão aos Evangelhos sinópticos.

Origens e Motivação dos Evangelhos Apócrifos

· Um dos motivos da multiplicação dos apócrifos foi o desejo de escrever ditos e fatos da vida de Jesus de forma ampliada em termos novelísticos, para edificar as comunidades e responder à curiosidade sobre o seu ministério. Havia muitas coisas que aguçavam a curiosidade dos ouvintes pagãos e dos fieis, isso motivou a produção de escritos Evangélicos “mais completos” e/ou suplementares.
· Tendências desse tipo são visíveis até mesmo nos acréscimos textuais feitos em manuscritos do Novo Testamento. Os Evangelhos de Mateus e Lucas parecem sentir a necessidade de entabular mais informações sobre a natividade e infância de Jesus. Os próprios Evangelhos canônicos podem ter, por suas lacunas históricas, motivado a busca por descrições suplementares sobre Jesus.
· Além disso, nos primeiros séculos havia também outras tradições relativas às palavras e ações de Jesus, havia outras formas de pregação e de catequese. As comunidades cristãs eram muito diversificadas pela origem, tradição e estruturação, pelos problemas e por sua própria fisionomia. Isso se tornou bastante evidente pelas descobertas e pelos estudos dos últimos decênios sobre o cristianismo-judaico, de um lado, e sobre os escritos de Nag Hammadi, do outro. Existia sem dúvida uma diversidade de tradição oral, de situações e de exigências que conseguiram conviver dialeticamente e harmonizar-se mais ou menos.
· Essas diversidades incluíam espontaneamente apresentações diferentes do Evangelho, correspondentes com as tradições e ao modo de viver e de pensar de cada comunidade. Todavia, à medida que se apertavam os vínculos da unidade e que se impunham os livros canônicos, a literatura apócrifa foi marginalizada e excluída da vida da igreja. Não obstante, muitos cristãos conheciam o Evangelho somente na forma que nós hoje denominamos apócrifa.

Importância dos Evangelhos Apócrifos

· Se por um lado estes Evangelhos não podem ser tidos como historicamente confiáveis e contendo tradições legítimas sobre Jesus – devido suas freqüentes fantasias e descrições lendárias sobre Jesus-, por outro lado eles servem de fonte para conhecermos e compreendermos melhor as diversas correntes de pensamento da igreja cristã primitiva.
· Sem dúvida, eles nos permitem um contato direto com os sentimentos, com os estados de ânimo, com as reações, as ânsias e os ideais de muitíssimos cristãos do Oriente e do Ocidente e nos revelam as tendências e as correntes morais e religiosas de muitíssimas igrejas, completando, suprindo e, às vezes, retificando o que chegou até nós por outras fontes. Os Evangelhos Apócrifos nos colocam em contato com a fé diversificada da igreja cristã primitiva, nos primeiros séculos.
· Além disso, estudiosos como J.Jeremias, tem mostrado ser possível “garimpar” e encontrar tradições autênticas sobre Jesus mesmo nos Evangelhos Apócrifos. Estudos no Evangelho de Tomé tem apontado para a possibilidade de tradições de ditos de Jesus mais antigas que as dos Evangelhos canônicos.
· Sem dúvida, uma história objetiva da Igreja Cristã Primitiva, de sua liturgia e de seus dogmas, hoje, não pode passar ao largo da literatura apócrifa, especialmente os Evangelhos. Na verdade, a própria antiguidade de alguns escritos já impõe, por si mesma, a necessidade de uma séria consideração. Em mais de um texto ou de um acontecimento transmitido só por apócrifos encontramo-nos diante de material que remonta à mais antigas e autênticas tradições cristãs.
· Prescindindo dos erros claros e das puras fantasias, certamente não é correta a posição daqueles que rejeitam praticamente tudo. Ainda que nesses textos se encontrem adulterações, mesmo assim eles são reflexos de notáveis estratos populares e completam o quadro oficial que temos através de outras fontes.
· Em suma, os Evangelhos Apócrifos, no mínimo contribuem para o conhecimento das correntes religiosas, das doutrinas e das tendências, muitas vezes heterodoxas, existentes entre os cristãos dos primeiros séculos; a leitura desses escritos além de revelar a fé simples do povo, mostra também suas ansiedades e curiosidades, além de seu inegável valor de testemunhas da literatura da literatura.

APÊNDICE

DECRETO GELASIANO (Século V d.C.)

“Todas as outras obras (isto é, as que não fazem parte do cânon) escritas ou difundidas por hereges e cismáticos não são aceitas pela igreja católica, apostólica,romana. Consideramos oportuno mencionar algumas como nos vêm à mente, as quais os católicos devem evitar:

1) O itinerário que está sob o nome do apóstolo Pedro, denominado os nove livros de São Clemente, é apócrifo;
2) os Atos sob o nome do apóstolo André são apócrifos;
3) os Atos sob o nome do apóstolo Tomé são apócrifos;
4)os Atos sob o nome do apóstolo Pedro são apócrifos:
5)os Atos sob o nome do apóstolo Filipe são apócrifos:
6)o Evangelho sob o nome de Matias é apócrifo:
7) o Evangelho sob o nome de Barnabé é apócrifo;
8) o Evangelho sob o nome de Tiago Menor é apócrifo;
9) o Evangelho sob o nome do apóstolo Pedro é apócrifo;
10)o Evangelho sob o nome de Tomé, usado pelos maniqueus,é apócrifo;
11)os Evangelhos sob o nome de Bartolomeu são apócrifos;
12)os Evangelhos sob o nome de André são apócrifos;
13)os Evangelhos falsificados por Luciano são apócrifos;
14)os Evangelhos falsificados por Hesíquio são apócrifos;
15)o livro sobre a infância do Salvador é apócrifo;
16)o livro sobre o nascimento do Salvador e sobre Maria ou sobre a parteira é apócrifo;
17)o livro dito “do Pastor” é apócrifo;
18)todos os livros escritos por Lêucio, discípulo do diabo, são apócrifos;
19)o livro do título “o Fundamento” é apócrifo;
20)o livro do título “O Tesouro” é apócrifo;
21)o livro sobre as Filhas de Adão, chamado Letoptogênese é apócrifo:
22)o centão sobre Cristo, formado com versos virgilianos, é apócrifo;
23)o livro de título “Atos de Tecla e de Paulo é apócrifo;
24)o livro chamado de “Nepote” é apócrifo;
25)o livro dos Provérbios, escrito por Hereges e em circulação sob o nome Sisto, é apócrifo;
26)o Apocalipse atribuído à Paulo é apócrifo;
27)o Apocalipse atribuído à Tomé é apócrifo;
28) o Apocalipse atribuído à Estevão é apócrifo;
29)o livro de título “Passagem de Santa Maria” é apócrifo;
30)o livro de título “Penitência de Adão” é apócrifo;
31)o livro com o nome tirado do gigante Ogia, que, segundo dizem os hereges, depois do dilúvio lutou com o dragão, é apócrifo;
32) o livro de título “Testamento de Jô” é apócrifo;
33) o livro de título “Penitência de Orígenes” é apócrifo;
34) o livro de título “ Penitência de São Crispino” é apócrifo;
35) o livro de título “Penitência de Jamnes e Mambre” é apócrifo;
36) o livro de título “As Sortes dos Apóstolos” é apócrifo;
37) o livro de título “Jogos dos Apóstolos” é apócrifo;
38) o livro de título “Cânones dos Apóstolos” é apócrifo;
39) o livro “Fisiólogo”, escrito pelos hereges e em circulação sob o nome de Ambrósio, é herético;
40) a História de Eusébio Panfílio é apócrifa;
41) as Obras de Tertuliano são apócrifas;
42) as Obras de Lactância (ou de Firmiano ou do Africano) são apócrifas;
43) as Obras de Postumiano e de Gallo são apócrifas;
44) as Obras de Montano, de Priscila e de Maximila são apócrifas;
45) as Obras do Maniqueu Fausto são apócrifas;
46) as Obras de Comodiano são apócrifas;
47) as Obras do Outro Clemente de Alexandria são apócrifos;
48) as Obras de Táscio Cipriano são apócrifas;
49) as Obras de Arnóbio são apócrifas;
50) as Obras de Ticônio são apócrifas;
51) as Obras do Presbítero Cassiano das Gálias são apócrifas;
52) as Obras de Vitorino Petau são apócrifas;
53) as Obras de Fausto de Reggio nas Gálias são apocrifas;
54) as Obras de Frumêncio Ceco são apócrifas;
55) a Carta de Jesus a Abgar é apócrifa;
56) a Carta de Abgar é apócrifa;
57) o Martírio de Círico e de Judite é apócrifo;
58) o Martírio de Jorge é apócrifo;
59) o Escrito de título “ Proibição de Salomão” é apócrifo;
60) Todos os Amuletos, escritos não – como blateram – em nome dos anjos, mas dos demônios, são apócrifos.”

[1] Denes Izidro é Pastor evangélico e estudioso de Novo Testamento, desenvolvendo pesquisas na área de Bíblia e literatura cristã primitiva canônica e não-canônica. Além disso, é também professor de Língua, Literatura, Contexto e Teologia do NT, e outras disciplinas na área de Bíblia e seu contexto histórico-literário, na Faculdade Teológica Cristã do Brasil (DF).© todos os direitos autorais desta obra devem ser preservados.
[2] Vielhauer, Phillip.História da literatura cristã primtiva.Academia Cristã: São Paulo; Koester, Helmut.Introdução ao novo testamento – História e literatura do cristianismo primitivo.Paulus: São Paulo; Moraldi,Luigi.Evangelhos apócrifos.Paulus: São Paulo; J.M.Robinson. A biblioteca de nag hammadi. Madras: São Paulo; Dubois, J.D.&Kuntzmann,R.O evangelho de tomé. Paulus: São Paulo.
[3] Consulte o apêndice A sobre elencos de livros considerados não-canônicos pela igreja cristã Antiga.